De Cabo Verde a Marte: o teatro fala português no Festival d’Avignon
O Festival d’Avignon, talvez o maior palco do teatro contemporâneo mundial, abre as suas portas este sábado, 5 de julho, e prolonga-se até 26. Na 79.ª edição, o prestígio é assumidamente lusófono: a abertura cabe à coreógrafa cabo-verdiana Marlene Monteiro Freitas, enquanto Tiago Rodrigues, o primeiro português a dirigir o festival, apresenta a sua nova criação, La distance, uma distopia íntima passada entre dois planetas. Avignon está em modo expansão, e Portugal leva o coração e a cabeça.
Uma “Mil e Uma Noites” dançada
A inauguração acontece no pátio do icónico Palais des Papes com Nôt, criação de Monteiro Freitas, artista residente e cúmplice da edição deste ano. Inspirada no espírito narrativo de As Mil e Uma Noites, a coreografia mistura exuberância e contenção, um jogo entre o grotesco e o virtuoso, onde o corpo ora é gesto de resistência, ora veículo de encantamento. Marlene, conhecida pela intensidade física e teatral das suas obras, oferece um mergulho poético onde a repetição é hipnose e o excesso uma forma de política.
Uma filha na Terra, um pai em Marte
Tiago Rodrigues estreia La distance, um espetáculo que transporta o público até 2077, onde a vida na Terra tornou-se insustentável e parte da humanidade vive em Marte. A distância do título é literal — entre um pai e uma filha que habitam mundos diferentes, mas também emocional, ecológica, existencial. Numa estética que cruza teatro documental com ficção científica, Rodrigues continua a sua busca por histórias que tocam o íntimo através do político. De 7 a 26 de julho, a peça terá 17 apresentações, integrando o núcleo central da programação.
A língua convidada é o árabe — mas fala-se universal
Este ano, o festival celebra a língua árabe e as suas estéticas, com artistas como Bouchra Ouizguen ou Adham Hafez, numa abordagem que quer derrubar muros culturais. O programa soma mais de 40 espetáculos que atravessam teatro, dança, performance, ópera e instalação, com nomes como Milo Rau, Kirill Serebrennikov e La Re-sentida a compor um cartaz denso e corajoso.
Para quem vibra com a cidade, o palco e o pensamento, Avignon é a montra da criação contemporânea global. E ter criadores portugueses em destaque não é apenas simbólico, é sinal de que a nossa voz artística está a dialogar com o mundo, de forma complexa, plural, arrojada.
Em Marlene Monteiro Freitas, encontramos o corpo que não pede desculpa. Em Tiago Rodrigues, o pensamento que antecipa o amanhã. E na junção de ambos, a prova de que a arte ainda é o lugar onde os futuros se desenham, com movimento, com palavras, com luz.